O colombiano Wilmer Becerra pautou as redes sociais na semana passada depois de ser alvo de um processo judicial, movido pela Apple, por ensinar consumidores a consertar aparelhos da marca nas redes sociais. O argumento da empresa é que o engenheiro se passa por um trabalhador credenciado para realizar esses reparos, oferecendo suporte aos produtos, o que ele nega.
A disputa entre Becerra e a Apple evidencia a demora dos países em regulamentar o que é conhecido como “direito ao reparo”: leis que garantem a autonomia dos consumidores para realizar consertos em aparelhos, inclusive celulares e computadores, sem necessidade de procurar o fabricante.
Baterias viciadas ou telas quebradas, problemas que atualmente exigem conserto em autorizadas, por exemplo, poderiam ser resolvidos em casa. O alto valor desses reparos frequentemente leva o consumidor a comprar um novo produto, o que, além de pesar no orçamento, é um problema para o meio ambiente por causa do descarte e do uso de matéria-prima para fabricação de novos itens.
O movimento em defesa da autonomia do consumidor, conhecido como “RighttoRepair”, é amplamente disseminado nos Estados Unidos e na Europa, mas ainda não é realidade no Brasil. Por aqui, não há qualquer legislação em debate sobre o tema. E ainda caminha a passos lentos na Câmara dos Deputados o PL 7875/2017, que veta a obsolescência programada, ação consciente das empresas para reduzir a vida útil de produtos.
Se o assunto ainda não chegou a legisladores e reguladores, nas redes sociais é claro o crescente interesse dos brasileiros pelo tema. No TikTok, as hashtags #reparosiphone e #reparosapple somam 53 mil e 239 mil visualizações, respectivamente. Já a #reparosdeiphone chega a 14,5 milhões, enquanto #consertodecelular bateu mais de 264 milhões de visualizações.
O professor de Educação Física Marco Senges, de 56 anos, conserta seus equipamentos desde 1992. Começou a aprender lendo revistas eletrônicas e hoje busca informação no Youtube. Ele sequer consegue mensurar o quanto já economizou nesses mais de 30 anos. Já consertou celular, computador, esteira elétrica e até aparelho de musculação de seu estúdio.
— Numa das vezes deram um orçamento de R$ 900 para conserto de uma TV. Perguntei qual era o problema à assistência e disseram que a placa-mãe queimou. Na internet, a “placa-mãe” custava R$ 140, com frete. Vi um vídeo no Youtube e consertei. Qualquer um com um pouquinho de bom senso faz — conta.
Como funciona lá fora
Nos Estados Unidos, o presidente Joe Biden assinou uma ordem executiva, em 2021, para exigir que empresas de tecnologia disponibilizassem manuais explicativos, peças e ferramentas aos consumidores para fazerem reparos. O democrata pressionou a Comissão Federal de Comércio americana a criar uma regra para que as pessoas tenham direito a consertar seus produtos ou escolher onde realizar o conserto. A regulamentação, no entanto, ainda não saiu.
A proposta de grupos em defesa do direito ao reparo, como a RepairAssociation, inclui que todos tenham acesso a manuais, peças e ferramentas, além de autonomia para personalizar seus produtos, instalando novos programas ou alterando o design.
A União Europeia ordenou, também em 2021, que as empresas disponibilizassem peças sobressalentes durante dez anos. Uma proposta da Comissão Europeia pretende aumentar a transparência sobre as condições de reparo nas empresas, facilitando que os consumidores possam comparar serviços de assistência técnica.
Poucas regras no Brasil
No Brasil, nem o Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro), nem o Código de Defesa do Consumidor (CDC) estabelecem regras específicas sobre autonomia no reparo de produtos.
A Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), do Ministério da Justiça e Segurança, explica, no entanto, que as empresas são obrigadas a assegurar a oferta de componentes e peças de reposição enquanto não for interrompida a fabricação ou importação de um produto. Após a interrupção da venda ou importação, a oferta de peças deverá ser mantida durante o tempo de vida útil daquele produto.
A secretaria avalia que seria positivo se os fornecedores instruíssem seus consumidores quanto a reparos básicos, como forma de proporcionar autonomia ao consumidor, economia de tempo e dinheiro, seja em reparos profissionais ou na substituição do produto. A Senacon não vê necessidade de atualização na lei para que isso aconteça.
Conserto em garantia
O professor da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro (FGV Direito/Rio) Gustavo Kloh lembra que a imensa maioria dos fornecedores brasileiros estabelece que o consumidor perde a garantia ao realizar conserto fora da assistência técnica autorizada:
— Passada a garantia, você pode consertar onde quiser, mas não há nada que obrigue o fabricante a lhe fornecer as informações para que faça você mesmo.
Especialistas ressaltam que muitos consumidores não conhecem sequer as regras para ter cobertura assistencial técnica diante de problemas de funcionamento e acabam descartando itens que podem ser consertados sob responsabilidade da empresa. No caso de produtos duráveis, se o problema for aparente, como algum amassado ou botão solto, o consumidor tem 90 dias após a compra para pedir a assistência do fabricante.
— Se o problema for oculto (como no software do aparelho), os 90 dias contam a partir do momento em que se identifica o defeito. Não sendo mau uso, está coberto pela garantia — explica Gabriel Britto, advogado especialista em Direito do Consumidor.
Uso de manuais
Britto destaca que, apesar de não haver regras sobre manuais no Brasil, pelo CDC, os fornecedores são obrigados a dar informações claras sobre seus produtos. Porém, em boa parte das vezes, os manuais sequer cumprem essa obrigação, afirma Mercedes Sanchez, especialista em experiência do consumidor, a chamada usabilidade:
— O ideal seria que os produtos pudessem ser usados sem manuais, que as pessoas tivessem dicas visuais e sonoras com pistas de como usá-los. Como nem sempre isso é possível, o manual deve ser claro.
Para a especialista, os manuais não são organizados na lógica de pensamento do consumidor. Quando se consegue localizar a explicação necessária, muitas vezes ela vem escrita em jargão técnico. Para Senges, os manuais só pioram:
— Os manuais eram mais detalhados. Alguns produtos sequer vêm com manual, é preciso buscar no site. Tenho como hábito, antes de o produto chegar, baixar o manual e aprender tudo sobre ele.
Sem ‘gambiarras’
Na visão de Britto, produtores de conteúdo explicativo sobre como realizar reparos não infringem nenhuma regra legal, a não ser que trabalhem como assistentes técnicos das marcas, quebrando contratos de sigilo.
— No mais, se o consumidor decidir seguir dicas na internet e houver problema no reparo, não será possível responsabilizar a fabricante — alerta o advogado.
Kloh completa que a regra é diferente se o influenciador usar componentes falsificados ou ensinar “gambiarras”:
— Quando há gambiarra, a marca pode processar o influenciador, porque prejudica a imagem da empresa.
Drible na obsolescência
O movimento em defesa do direito ao reparo diz que essa é uma forma de driblar a obsolescência programada, estratégia de fabricantes para diminuir a vida útil de seus produtos. Fabro Steibel, diretor-executivo do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio (ITS/Rio), destaca que o descarte de resíduos eletrônicos leva a altíssimas emissões de carbono. E reforça que é preciso se pensar em novas soluções de reparo:
— Seria interessante pensar em reparos a partir de impressão 3D, que ainda não é muito desenvolvida no Brasil. Alguns consertos podem ser feitos por leigos, e as empresas poderiam reconhecer isso. Há consertos que podem trazer riscos para a saúde e a segurança se feitos em casa, mas nem tudo precisa de autorizada.
Em nota, a Associação Nacional dos Fabricantes de Produtos Eletroeletrônicos e Eletrodomésticos (Eletros) afirmou que manuais esclarecem em detalhes o uso dos produtos. A Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee) acrescentou que os manuais atendem às regras da agência reguladora e ao CDC.