O boom de queixas de consumidores contra a Unimed-Rio — que hoje tem o pior Índice Geral de Reclamações (IGR) entre as empresas de grande porte do setor, 228,6 no ano, contra uma média de 60,4 —mostra o agravamento de uma crise que se arrasta há quase uma década. A situação da cooperativa carioca, que registrou prejuízo de R$ 840 milhões no primeiro semestre deste ano, levanta um debate sobre se as ferramentas disponíveis no mercado para lidar com operadoras de saúde em dificuldades são eficazes.
24 empresas direção fiscal
Segundo dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), entre 2013 e agosto deste ano, foram instaurados regimes de direção fiscal em 110 empresas, sendo que 24 ainda estão no processo. No mesmo período, 71 operadoras obtiveram a recuperação.
Sob direção fiscal e técnica da ANS desde 2015, a Unimed-Rio foi alvo de um esforço sem precedente para evitar sua liquidação em 2016, recomendada à época pela Diretoria de Normas e Habilitação das Operadoras da agência.
Um Termo de Compromisso — firmado pelos Ministérios Públicos do Estado do Rio e Federal, Defensoria Pública, prestadores de serviços, Sistema Unimed e ANS — criou condições para que a empresa mantivesse a assistência a seus então 800 mil usuários. Hoje, são cerca de 600 mil.
No acordo, prestadores de serviços se comprometem a não deixar de atender beneficiários da cooperativa e aceitam receber pagamentos com atrasos de até 70 dias. Quase oito anos depois, no entanto, Guilherme Jaccoud, presidente da Federação dos Hospitais e Estabelecimentos de Serviços de Saúde do Estado do Rio (Feherj), diz que novos acordos individuais estão sendo firmados entre a Unimed-Rio e alguns hospitais, pois o prazo de pagamento já não está sendo cumprido.
O não atendimento do Sistema Unimed aos clientes da cooperativa carioca por falta de pagamento é cada vez mais frequente. A ANS registrou este ano 160 queixas referentes a não atendimento de parceiras, contra 13 em 2022. Há casos de negativas de atendimento em cooperativas de cidades como Belo Horizonte, Contagem, Niterói, Brasília e João Pessoa, entre outras.
A Unimed do Brasil afirma que o “Sistema Unimed está em diálogo com as autoridades e a rede prestadora para encaminhamento da melhor solução, que assegure a normalidade do atendimento aos clientes.” E reforça que as autoridades signatárias do TAC são “competentes para regular e fiscalizar seu cumprimento, verificar as condições da operadora e determinar as medidas cabíveis.
O número de reclamações de consumidores à ANS até setembro já ultrapassa o total do ano passado: 14.478, contra 10.826. A dificuldade de acesso ao atendimento é a principal. Mas há casos como a da empreendedora Michele Matos, de 35 anos, mãe de um menino com transtorno do espectro autista, que há cerca de 10 dias foi informada de que seu plano de saúde, um coletivo por adesão, será cancelado no dia 14 deste mês. Pela lei, planos coletivos podem ser cancelados unilateralmente pela operadora, desde que respeitado os prazos contratuais.
— É um absurdo o que está acontecendo — diz Michele.
A dona de casa Cintia Sanders, de 42 anos, também tem um filho autista e está na mesma situação que Michele:
— Não consigo dormir desde que recebi essa notícia.
A Unimed-Rio informa que os contratos envolvem pouco mais de 1,8 mil beneficiários e “estão sendo cancelados em função do desequilíbrio financeiro”.
Foco: Gestão sustentável
Em maio, a ANS autorizou a transferência de parte da carteira da Unimed-Rio, de pessoas e empresas do estado mas com residência ou CNPJ fora da capital e de Duque de Caxias, à Federação das Unimeds do Estado do Rio (Ferj). Até o momento, 73 mil usuários foram transferidos, em mais uma tentativa de melhorar o desempenho da cooperativa carioca, que passaria a focar na gestão de saúde dos clientes locais.
No entanto, a transferência para a Ferj tem sido criticada, devido ao fato de até 2022 a federação não atuar como operadora. Apesar de ter registro, a Ferj atuava basicamente como uma câmara de compensação de pagamentos de atendimentos feitos a clientes entre as cooperativas do estado. O IGR da Ferj, de 368,4 no ano, também preocupa: é o pior entre as de médio porte.
— A ANS errou lá atrás ao permitir que a Amil transferisse usuários do seu plano individual à APS, que não tinha estrutura, e teve de voltar atrás. Parece estar cometendo o mesmo erro com Unimed-Rio e Ferj — avalia Ana Carolina Navarrete, coordenadora do Programa de Saúde do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).
A Ferj pondera que a alienação voluntária da carteira da Unimed-Rio “envolve movimento de massa atípico em cada fase e, naturalmente, gera demanda de dúvidas proporcional nos clientes migrados”. Mas destaca que 100% das queixas foram solucionadas, o que demonstraria sua capacidade operacional.
Em nota, a Unimed-Rio diz estar “revisando seu modelo de negócio com foco em uma gestão sustentável e que trabalha em medidas para sanear sua situação econômico-financeira, como a transferência de parte da carteira para outras cooperativas do Sistema Unimed, em especial a Ferj.” E reforça seu compromisso “de melhoria nos indicadores de mercado, de atendimento ao cliente e dos serviços prestados.”
A Defensoria Pública e o Ministério Público do Estado do Rio dizem que, em dezembro, será possível fazer uma análise dos efeitos da transferência parcial da carteira da Unimed autorizada pela ANS, assim como de outros esforços para o restabelecimento integral da operação e da sustentabilidade da operadora.
Ferramentas suficientes
Para Ana Carolina, do Idec, o caso da Unimed-Rio mostra que a ANS precisa fazer uma revisão profunda dos seus instrumentos de intervenção no mercado:
—As direções fiscal e técnica têm chegado de forma tardia. A normativa de alienação compulsória está desatualizada, por exemplo, quanto à comprovação da capacidade de atendimento da operadora de destino.
Já para Maria Stella Gregori, ex-diretora da ANS, as ferramentas são suficientes:
— Cabe à ANS o poder de fiscalizar, monitorar e dar o veredicto. Quando estava na agência, a maioria das empresas em direção fiscal tinha problema de gestão.
Lucas Miglioli, sócio diretor do M3BS advogados, avalia, no entanto, que o ajuste da gestão via direção fiscal pode ser mais eficiente para empresas de menor porte. Ele explica que as grandes, com muitos beneficiários, “têm dificuldade de se organizar internamente e buscar aportes financeiros para responder ao volume de obrigações.”
Presidente da ANS em 2016, quando foi firmado o TAC que manteve a Unimed-Rio funcionando, José Carlos Abrahão diz que, apesar de haver instrumentos suficientes, é preciso um monitoramento mais rigoroso:
— Precisamos aperfeiçoar o crivo de entrada. Muitas vezes operadoras lançam planos com preços que não pagam os custos, e isso deve acender um sinal de alerta de problemas futuros.
Para a professora e pesquisadora da área de seguros Angélica Carlini, é preciso ainda pensar em medidas para ajudar a absorção dos usuários pela empresa de destino quando há alienação da carteira, para evitar problemas futuros.