A concessão responsável do crédito determinada pela Lei do Superendividamento, a 14.181, há quase dois anos, parece ainda não ter sido incorporada pelos bancos. O número de pessoas à procura de ajuda no atendimento a superendividados do Núcleo de Defesa do Consumidor (Nudecon) da Defensoria Pública do Rio, por exemplo, não só dobrou de 2019 para cá, como os casos se agravaram, o que levou a abertura de uma investigação.

A Defensoria já notificou a Federação Brasileira dos Bancos (Febraban) e o Banco Central (BC) — órgão regulador do setor — para que informem de que forma foram incorporados às práticas bancárias os preceitos de crédito responsável e adequado. A entidade quer saber também que tipo de monitoramento é feito a esse respeito. Os grandes bancos do país, diz o órgão, serão notificados nos próximos dias.

— O objetivo é conseguir uma mudança de postura dos bancos, que poderá vir por uma melhor regulamentação, um termo de ajustamento de conduta, adequações internas das instituições ou mesmo por ações judiciais. Vamos ter que esperar as respostas para avaliar — explica Thiago Basílio, subcoordenador do Nudecon.

A postura do mercado, afirma Basílio, é colocada em xeque por relatos como os de uma mulher, de 91 anos, que tem 100% de sua aposentadoria comprometida por 14 empréstimos feitos em um único banco, e o de uma consumidora com renda líquida de R$ 4 mil para a qual foi concedido um crédito com parcela mensal de R$ 5 mil.

Ainda há casos como o de um correntista que teve negada a troca do crédito do cheque especial por outra modalidade com juros menores.

— O que vemos são consumidores com renegociações sucessivas com os bancos, com expressivos aumentos de juros. A maioria tem mais de 50% de sua renda comprometida com empréstimos, mas há casos em que se chega a 300%. Não houve mudança de postura das instituições financeiras no sentido de melhor aconselhamento e orientação aos clientes. A prática é oferecer mais e mais crédito — destaca o defensor.

A perda do emprego, em 2016, foi o estopim para o endividamento de um economista carioca, de 42 anos, que preferiu não se identificar, e que chegou a ter 60% de seu rendimento mensal retido pelo banco para o pagamento de 12 contratos de empréstimos:

— Toda vez que me via apertado, o banco vinha com mais ofertas de crédito e renegociações nem sempre boas para mim. Eu não tinha outra saída e acabava aceitando. Tem renegociar três vezes, mas só com a ajuda da Defensoria Pública consegui uma saída e reorganizar minha vida financeira — explica o carioca, que agora após a renegociação terá 20% do salário comprometido com o pagamento de seu débito com o banco pelos próximos cinco anos.

Acordos: 15% dos casos

Mesmo para os peritos, a negociação anda difícil. Há um ano em funcionamento o Núcleo de Prevenção e Tratamento ao Superendividamento do Procon Estadual do Rio (Procon-RJ) conseguiu fechar acordos em apenas 15% dos casos.

—Isso se deve à postura dos bancos, que continuam focando no valor do débito e não no objetivo da Lei de Superendividamento que é a preservação de valores mínimos que assegurem uma vida digna, com saúde, educação, alimentação, moradia — diz Henrique Neves, coordenador do núcleo.

Amaury Oliva, diretor de Sustentabilidade, Cidadania Financeira, Relações com o Consumidor e Autorregulação da Febraban, destaca que, desde 2013, a autorregulamentação do setor tem normas para concessão de crédito responsável, publicidade e tratamento de dívidas. Oliva pontua como desafios para o setor a alta informalidade dos trabalhadores brasileiros e a falta de informação sobre dívidas não bancárias. E sublinha que trata-se de um binômio: a concessão de crédito responsável pelo banco e o uso adequado pelo consumidor:

— Mais de 40% dos brasileiros vivem na informalidade, não têm renda declarada, não têm holerite. Dois terços das dívidas não são com bancos. São o varejo, a escola, a conta da vendinha. São desafios. O ideal seria um sistema que reunisse todas as dívidas para um monitoramento adequado. Incluímos uma regra recente de pedir ao consumidor uma declaração ao contratar o crédito de que sua subsistência não está ameaçada — acrescenta.

Situação pode piorar

Na avaliação de Ione Amorim, economista do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), a declaração de Amaury Oliva é uma tentativa de transferir a responsabilidade do crédito ao consumidor. A economista teme que a situação ainda piore com a decisão recente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de autorizar a penhora do salário para pagar dívidas e se for aprovada a lei que permiti a contratação de múltiplos empréstimos tendo como garantia um bem, como imóvel ou carro:

— A política de concessão de crédito dos bancos é pautada pelas garantias e não pela análise da capacidade de pagamento do consumidor. Se fosse pela capacidade, esses casos relatados não aconteceriam. As margens do consignado, com desconto em folha, foram sendo ampliadas e hoje chegam a 45%. O Judiciário ainda autorizou o desconto em conta de crédito pessoal limitado a 30% da renda. Nos créditos para os quais o banco não tem garantia, cheque especial e cartão, os juros são astronômicos. As dívidas que o cliente tem fora dos bancos são porque, descontados os empréstimos, não sobra nada.

Em nota, o Banco Central destacou que a Resolução Conselho Monetário Nacional (CMN) 4.949/2021 trata de adequação de produtos e serviços às necessidades dos clientes e diz acompanhar “as negociações e especialmente as renegociações de crédito”. A instituição afirmou verificar a “evolução constante e gradativo amadurecimento do mercado desde a contratação e prestação dos serviços até o encerramento ou a transferência de relacionamento”.

Para contratar e renegociar

Analise suas contas

Faça um levantamento de todas as suas despesas e débitos, separando contas de consumo mensal e dívidas financeiras (cartão de crédito, empréstimos, cheque especial, entre outros).

Confira contratos e saldos

Solicite aos bancos e às empresas cópias dos contratos das dívidas e extratos com saldos atuais. É seu direito. No site do Banco Central (www.bcb.gov.br), compare as taxas de juros e os encargos de cada instituição. Se ainda tiver dúvidas, busque orientação em Procons ou entidades de defesa do consumidor.

Procure ajuda

Se ao pagar suas dívidas não sobra o suficiente para pagar por moradia, alimentação, saúde e educação, procure um núcleo de atendimento para superendividados.

Não tenha vergonha

Na elaboração do diagnóstico do endividamento, dê o máximo de informações sobre a renda, os gastos e a estrutura familiar envolvida na gestão das finanças da casa.

Negocie o que realmente pode pagar

Ao finalizar as propostas junto aos credores, certifique-se que o novo acordo está dentro da sua capacidade de pagamento.

Endereços

O Nudecon fica na Rua São José 35, 13º andar, Centro do Rio (Edifício Menezes Côrtes). Telefone: 129. O Procon-RJ atende com agendamento. Envie um e-mail com a palavra AGENDAMENTO no “assunto” para o endereço eletrônico reclame@procon.rj.gov.br ou uma mensagem de WhastApp para o número (21) 99374-1505. Telefone: 151.

Conheça seus direitos
Informações obrigatórias

No ato da contratação de crédito, os bancos são obrigados a informar:

  • Valor total financiado
  • Taxas mensal e anual de juros
  • Acréscimos remuneratórios, moratórios e tributários
  • Valor, número e periodicidade das prestações
  • Soma total a pagar por empréstimo
  • Cópia do contrato

O consumidor tem o direito de exigir sua via do documento (física ou digital) após a assinatura.

Sigilo pessoal

O cliente tem direito à privacidade e ao sigilo das informações cadastrais pessoais. Mesmo após o fim do contrato, o banco pode manter os dados, mas não utilizá-los sem consulta.

Portabilidade

O cliente tem direito, a qualquer momento, de solicitar a migração da dívida para outro banco que oferece taxa de juros menor.

Quitação antecipada

O consumidor pode quitar o empréstimo antecipadamente. O banco deve conceder a redução proporcional de juros e demais acréscimos, de acordo com o número de parcelas restantes.

Venda casada

A compra de um produto ou serviço ou a realização de um empréstimo não pode estar condicionada à aquisição de outra coisa (venda casada). O consumidor não pode entrar no banco para pedir um empréstimo e sair com um título de capitalização, um seguro de vida…

Cartões

A instituição não pode enviar produto ou prestar serviço sem solicitação prévia. O fato de um banco enviar cartão de crédito sem pedido do cliente pode gerar indenização.

Fonte: https://extra.globo.com/economia/financas/noticia/2023/05/credito-irresponsavel-poe-brasileiros-em-risco-veja-seus-direitos-na-hora-de-pegar-um-emprestimo.ghtml